Nem heróis, nem vilões: os policiais como TRABALHADORES da Segurança Pública.

Recentemente, uma notícia vinda de Honduras chamou a atenção. Diante da crise iniciada por suspeitas de fraudes no processo eleitoral do país, grupos da Polícia Nacional hondurenha se negaram a reprimir manifestações da população. O governo chegou a decretar toque de recolher, mas membros do esquadrão Cobras, grupo especial antimotins, apoiados também por agentes policiais preventivos, se recusaram a reprimir quem descumprisse a determinação.

Segundo a BBC, um porta-voz do grupo de policiais disse: "Nós somos povo e não podemos estar matando o próprio povo, nós também temos família".

Postura bem diferente da adotada pela Polícia Militar no Brasil, tanto nas manifestações de junho de 2013 quanto nas manifestações contra o GOLPE de 2016. Especialmente em São Paulo, Estado que foi condenado em primeira instância pelos excessos de sua Polícia Militar contra manifestantes. Como explicar tamanha diferença de tratamento à população entre instituições que possuem os mesmos objetivos: proteger os cidadãos, o patrimônio público, e manter a ordem?

San Pedro Sula - uma das cidades mais violentas do mundo 

Se tentarmos encontrar explicações no nível de violência a ser combatida, veremos que a realidade desafia a lógica: Honduras tem cidades onde a violência é alarmante. Em 2014, pelo terceiro ano consecutivo, a cidade de San Pedro Sula foi eleita a mais violenta do mundo, com taxa de homicídios de 187 mortos por 100 mil habitantes. Outra cidade hondurenha, Distrito Central, ficou em sexto lugar nessa lista, com taxa de homicídios de 79,42 por 100 mil. A cidade brasileira mais violenta foi Maceió, em quinto lugar, com taxa de homicídios de 79,76 por 100 mil. Num levantamento mais recente, de 2016, San Pedro Sula aparece como a segunda cidade mais violenta, atrás apenas de Caracas, na Venezuela. Distrito Central permanece em sexto lugar, e a cidade brasileira mais violenta é Fortaleza, em 12º lugar. São Paulo e Rio de Janeiro nem sequer aparecem no ranking, composto por 50 cidades. Logo, se repressão policial fosse a resposta necessária para o combate à violência, a Polícia Nacional de Honduras teria um comportamento muito mais repressor do que a Polícia Militar de São Paulo, por exemplo.

Desmilitarização da Polícia Nacional de Honduras

Na verdade, o diferencial parece ser o fato de a Polícia Nacional de Honduras ser desmilitarizada. Desde 1998, ano da redemocratização do país, tornou-se uma entidade independente e civil.

Criada em 5 de janeiro de 1888, a Polícia Nacional de Honduras foi eliminada na década de 1950 (quando Honduras entrou em um estado militar) e tornou-se Guarda Civil, um corpo paramilitar com funções policiais. Honduras retornou ao estado democrático no início da década de 1980, e como parte da transição da separação das forças policiais das forças militares, a Força de Segurança Pública (FUSEP) passa ao controle civil em 1997. Em 1998, o presidente Carlos Roberto Flores, com o Congresso Nacional de Honduras, aprovou a nova lei orgânica que estabelece a nova Polícia Nacional de Honduras, uma dependência da Secretaria de Segurança sob o comando do Ministro da Segurança e sob a execução geral do Diretor-Geral da Polícia Nacional. Atualmente, possui seis divisões dentro de sua organização, cada uma liderada por seu respectivo Diretor Nacional:

1. Direção Nacional da Polícia Preventiva (DNPP)
2. Direção Nacional de Investigação Criminal (DNIC)
3. Direção Nacional de Serviços de Investigação Especiais (DNSEI)
4. Direção de Tráfego Nacional (DNT)
5. Direção Nacional de Serviços Preventivos Especiais (DNSEP)
6. Sistema de Educação Policial (SEP)

Esse modelo de polícia desmilitarizada, mais próxima da população, parece favorecer uma atitude empática, uma maior identificação entre os policiais e o povo a quem têm por missão proteger. Os policiais se reconhecem como parte do povo, como trabalhadores da segurança pública.

Breve parêntesis: em 2013, foi criada também uma Polícia Militar de Honduras, muito mais pela convicção de Juan Orlando Hernández do que por critérios técnicos. Defensor da corporação Polícia Militar por princípios, Hernández era membro do Congresso em 2013 quando encabeçou sua criação. O Congresso rejeitou recentemente uma iniciativa de Hernández, hoje presidente, de consagrar essa força na Constituição de Honduras. Atualmente, busca apoio para uma proposta de referendo sobre o assunto. A existência de uma Polícia Militar em Honduras preocupa os defensores dos direitos humanos no país, que temem retrocessos. Em março deste ano, membros da Polícia Militar de Honduras foram acusados de sequestrar um comerciante, por um resgate de US$ 5,700 (cinco mil e setecentos dólares). Fecha parêntesis...

Polícia Militar: reprodução da violência e suicídios

Mas, e no Brasil? A militarização do modelo de segurança pública tem alguma influência na incidência de casos de violência policial? Como a militarização afeta os policiais?

Um estudo de 2015 conduzido pelo GEPeSP (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), da Uerj, sob a coordenação da cientista política Dayse Miranda e em parceria com a PM do Rio de Janeiro, definiu o mais completo diagnóstico sobre o problema do suicídio entre policiais militares fluminenses, investigando os fatores que levaram ao suicídio dos policiais.

Alguns resultados revelaram que, de 224 policiais militares entrevistados, 10% já tentaram suicídio e 22% afirmaram ter pensado em suicídio em algum momento. De acordo com dados da própria Polícia Militar, de 1995 a 2009 foram notificados 58 casos de suicídio de policiais militares no Rio de Janeiro, mais 36 tentativas de suicídio. Dos 58 óbitos por suicídio de policiais, três aconteceram em serviço e 55 nos dias de folga. Uma média de três suicídios a cada ano. O número de mortes por suicídio na folga foi 18 vezes maior do que em serviço. Mas a realidade pode ser ainda mais grave, devido à subnotificação: "As entrevistas com profissionais de saúde da PMERJ sugerem que muitos dos casos de suicídios consumados e tentativas de suicídio não são informados ao setor responsável por inúmeras razões. Entre elas, estão as questões socioculturais – o tabu em torno do fenômeno; a proteção ao familiar da vítima (a preservação do direito ao seguro de vida) e a existência de preconceito ao policial militar diagnosticado com problemas emocionais e psiquiátricos", afirma o estudo. Os pesquisadores puderam também estimar o risco relativo de mortes por suicídio de PMs em comparação ao da população geral do Estado entre 2000 e 2005: quase 4 vezes maior entre os policiais militares do que na população geral.

O estudo também traçou um perfil médio do policial militar suicida: é um praça (sargento, cabo ou soldado) do sexo masculino, de 31 a 40 anos. Segundo o Grupo de Atendimento aos Familiares de Policiais Militares Falecidos, de um grupo de 26 policiais que se mataram, apenas dois eram mulheres; 55% tinham entre 31 e 40 anos; 14 eram casados ou viviam em união consensual; 14 tinham pelo menos um filho; nove foram definidos pelos parentes como brancos e 17 como pardos; 10 eram evangélicos; 23 eram praças (sargentos, cabos e soldados), dois eram coronéis e um era subtenente; 19 eram da ativa e sete eram inativos; 13 trabalhavam em unidades operacionais e três em unidades administrativas.

Com base nas entrevistas e nos diagnósticos com as famílias dos policiais militares suicidas, foi possível elencar possíveis fatores para o sofrimento psíquico, culminando nas tentativas de suicídio e no suicídio em si, fatores esses diretamente associados a falta de reconhecimento profissional, maus-tratos e quadros depressivos, além da frequente transferência, para a família, de relações violentas comuns no quartel. Incluem: rotina de agressões verbais e físicas (perseguições/amedrontamento, abuso de autoridade, xingamentos, insultos, humilhações); insatisfação com a PM, no que concerne a escala de trabalho, infraestrutura, treinamento, falta de reconhecimento profissional, falta de oportunidades de ascensão na carreira e desvalorização pela sociedade; indicadores de depressão variados e problemas de saúde física.

"Vemos uma interface de tensão entre o mundo do trabalho, onde o policial está sujeito a relações abusivas, e o mundo fora do trabalho, onde o policial doente reproduz relações violentas. Tudo isso num contexto em que o policial tem acesso a uma arma, o que facilita qualquer ato violento. Outros profissionais também têm problemas no trabalho. Mas não têm uma arma na cintura", analisa Miranda.

Os dados demonstram o quanto os policiais podem ser influenciados de forma extrema pela rotina imposta pela Polícia Militar. Evidentemente, os policiais suicidas são porta-vozes de uma realidade compartilhada pela maioria dos trabalhadores daquela corporação. São uma minoria que externa sua angústia num ato desesperado. Mas essa mesma angústia assola a maioria dos policiais militares, que em alguns casos reproduzem na relação com a população a violência sofrida.

Desmilitarizar não é desarmar as polícias
Por pura desinformação, algumas pessoas associam a desmilitarização das polícias ao seu desarmamento, ou à sua extinção. Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa fluminense (ALERJ) e deputado estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL/RJ, abordou o tema: “Nós não defendemos o fim, mas a desmilitarização da Polícia Militar. Isso não significa que os policiais serão desarmados, proibidos de patrulhar as ruas ou impedidos de prevenir crimes. Desmilitarizar a PM é transformá-la numa instituição civil. Atualmente ela é vinculada ao Exército. Essa mudança, inclusive, melhoraria muito as condições de trabalho de policiais e poderia evitar crises como a que ocorre no Espírito Santo (referindo-se ao motim de policiais militares do ES, no início de 2017)”.

Especialistas em segurança pública defendem o fim do caráter militar das polícias, como um meio de tornar as corporações mais próximas da sociedade, bem como propiciar uma formação voltada para a proteção da cidadania e a garantia de direitos. Segundo o delegado Pedro Filipe de Andrade, professor da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e assessor jurídico da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná, “são cada vez mais raros no mundo os países que adotam o modelo militarizado como o nosso. E o motivo é simples: a doutrina militar historicamente foi criada para defesa de território, governos e seus governantes; na lógica militar, o adversário é sempre um inimigo a ser abatido. Esse modelo se mostrou, ao longo do tempo, defasado no que tange ao policiamento comunitário”.

Outro argumento pela desmilitarização das polícias é que a maioria dos policiais militares defendem a ideia, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em julho de 2014. De um total de mais de 21 mil policiais em todo o Brasil,  73,7% declararam-se a favor da desvinculação da PM com o Exército, 76,1% defenderam a desmilitarização e 93,6% apontaram a necessidade de modernização dos regimentos e códigos disciplinares (como, por exemplo, da Polícia Militar de São Paulo, que proíbe que seus integrantes de fazer qualquer tipo de crítica à instituição, sob pena de prisão).

O ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, é outro crítico a estrutura militar das polícias. Para ele, o policiamento ostensivo precisa identificar problemas e prioridades, trabalhar em conjunto com a comunidade, em um contexto no qual o policial tenha autonomia garantida para tomar decisões estratégicas. “O policial na rua não se restringe a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento determinado pelo estado-maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele atua como gestor local da segurança pública, o que significa pensar, analisar, dialogar e decidir, e não apenas cumprir ordens”, complementa Soares.

PEC 51: desmilitarização, unificação e modernização das polícias

Mas uma alternativa para essa dura realidade se desenha no Senado Federal. Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania), está pronta para pauta a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51. De autoria do senador Lindbergh Farias (PT/RJ) e outros, e tendo como relator o senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP), tem como objetivo reestruturar o modelo de segurança pública através da desmilitarização das polícias.

Atualmente, as Polícias Militares no Brasil são vinculadas ao Exército como força reserva, seguindo seu modelo organizacional. Com a PEC 51, as polícias passariam a ser de responsabilidade dos Estados. Considerando as diferenças culturais e sociais de cada região, o formato das polícias seria adequado a cada Estado, com possibilidade de se atribuir funções aos municípios. No modelo atual, todos os Estados têm o mesmo modelo de organização policial, e os municípios só podem criar guardas patrimoniais. As polícias poderiam assim se organizar em aspectos territoriais e criminais. Municípios com baixa criminalidade poderiam ter uma organização diferente de metrópoles. Polícias para crimes de internet e para sequestros poderiam ter estruturas diferentes.

Os municípios teriam poder de polícia. O modelo de guardas patrimoniais, as chamadas guardas civis, é limitado e muitas vezes se confunde com a ideia de uma "quase polícia", inclusive com o uso de armas de fogo. Este modelo tem constitucionalidade discutível, e a PEC pretende deixar as funções mais claras.

Pelo projeto, o governo federal agiria, principalmente, na formação e treinamento dos policiais, garantindo que o padrão de qualidade seja uniforme em todos os Estados. Outra mudança é a unificação dos processos: a organização policial conduziria todo o processo de cumprimento da lei, desde a prevenção até a investigação. Atualmente, parte do processo é conduzido pela Polícia Militar, e outra parte, pela Polícia Civil. A ideia é dar agilidade aos processos.

Há também na PEC a previsão de carreira única. Toda organização policial teria uma linha de promoções unificada. Hoje existem linhas de carreira separadas para oficiais e praças, e dificilmente um policial iniciante chega a coronel, por exemplo. O mesmo acontece nas polícias civis, entre agentes e delegados. A proposta garante ainda a manutenção de todos os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança. Os policiais seriam mais valorizados perante a sociedade e o poder público (justamente uma das queixas reveladas no estudo da Uerj). A PEC prevê, ainda, a aproximação das polícias com as populações mais vulneráveis. Hoje, a imagem que se tem das polícias com esses grupos é de hostilidade e brutalidade.

A PEC 51 é uma proposta em sintonia com outras polícias no mundo. Além do caso já citado da Polícia Nacional de Honduras, vemos nos Estados Unidos um modelo policial bem parecido com o proposto, com ênfase no controle para os municípios. Mesma filosofia adotada pela Polícia Metropolitana de Londres, consagrada recentemente como a polícia menos violenta do mundo. A ONU também recomenda o fim da militarização das polícias. E a ONG Anistia Internacional aponta em outro tema importante, ainda mais polêmico: a diminuição do uso de armas letais pelas forças policiais.

Considerando esses precedentes, acreditamos que a desmilitarização das polícias no Brasil, nos moldes da PEC 51, seria um passo importante para uma polícia mais dinâmica, mais preparada, com policiais mais valorizados e mais próximos da população. Mais que policiais, trabalhadores da segurança pública.


Por Francisco Mestre.




Imagens:
https://apeoesp.wordpress.com/2016/11/12/secretario-da-seguranca-desrespeita-vitimas-da-violencia-policial/
http://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2017/12/honduras-policiais-se-negam-a-reprimir-protestos-e-cobram-respeito-as-urnas-1

Fontes:
https://noticias.bol.uol.com.br/bol-listas/12-perguntas-sobre-a-desmilitarizacao-da-policia.htm
https://es.wikipedia.org/wiki/Polic%C3%ADa_Nacional_de_Honduras
http://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2017/12/honduras-policiais-se-negam-a-reprimir-protestos-e-cobram-respeito-as-urnas-1
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1824607-estado-de-sp-e-condenado-por-excessos-da-pm-nas-manifestacoes-de-2013.shtml
https://es.insightcrime.org/noticias/noticias-del-dia/policia-militar-honduras-acusada-secuestro/
https://exame.abril.com.br/mundo/as-50-cidades-mais-violentas-do-mundo-21-delas-no-brasil/
http://www.sitedecuriosidades.com/curiosidade/top-10-cidades-mais-violentas-do-mundo.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_Metropolitana_de_Londres




http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160322_policiais_suicidios_fe_if
https://www.brasildefato.com.br/2017/02/18/desmilitarizar-a-pm-nao-e-desarma-la-explicam-especialistas/